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segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Atributos do Egoísmo





ATRIBUTOS DO EGOÍSMO

Já consideramos os atributos da benevolência e os estados da sensibilidade e do intelecto e tam­bém os atos externos neles implicados como suas conseqüências necessárias. Vamos agora seguir o mesmo curso com o egoísmo.
1. A voluntariedade é um atributo do egoísmo. O egoísmo é muitas vezes confundido com um
mero desejo. Mas os dois não são idênticos, de modo algum. O desejo é inato. É um fenômeno da sensibilidade. É um estado mental totalmente involuntário e, por si, não pode produzir qual­quer ação externa nem ter algum caráter moral. O egoísmo é um fenômeno da vontade e consiste em empenhar a vontade na satisfação dos dese­jos. O desejo em si não é egoísmo, mas submeter a vontade ao governo do desejo é egoísmo. Deve-se compreender que nenhum tipo de mero dese­jo e nenhuma intensidade de mero desejo consti­tui-se egoísmo. O egoísmo começa quando a von­tade cede ao desejo e procura obedecer a ele, em oposição à lei da inteligência. Não importa qual seja o tipo de desejo; se o desejo governa a vonta­de, isso é egoísmo. O egoísmo precisa ser a von­tade num estado de compromisso com a satisfa­ção do desejo.


2. A liberdade é outro atributo do egoísmo.
Ou seja, o desejo não exige a escolha da satis­fação pessoal. Mas a vontade é sempre livre para escolher em oposição ao desejo. Disso, todo agen­te moral é tão consciente quanto da própria existência. O desejo não é livre, mas a opção de satisfazê-lo é e deve ser livre. Há um sentido, conforme terei ocasião de mostrar, em que a escravidão é um atributo do egoísmo, mas não no sentido de a vontade escolher, por uma lei de necessidade, satisfazer o desejo. A liberdade, no sentido de capacidade de fazer uma escolha oposta, deve sempre manter-se como um atributo do ego­ísmo, enquanto o egoísmo continuar sendo pecado ou enquanto continuar mantendo alguma relação com a lei moral.
3. A inteligência é outro atributo do egoísmo.
Com isso não se quer dizer que a inteligência é um atributo ou fenômeno da vontade, nem que a escolha da satisfação própria esteja de acordo com as exigências do intelecto. Mas se quer dizer que a escolha é feita com o conhe­cimento do caráter moral que nele está implicado. A mente conhece sua obri­gação de fazer uma escolha oposta. Não é um engano. Não é uma escolha feita na ignorância da obrigação moral de escolher, como um fim, o máximo bem do ser, em oposição à satisfação pessoal. Trata-se de uma escolha inte­ligente, no sentido de ser uma resistência consciente às exigências do inte­lecto. É uma rejeição consciente de suas alegações. E uma elevação consci­ente da satisfação e preferência pessoal acima de todos os interesses mais elevados.
4. A irracionalidade é outro atributo do egoísmo.
Com isso se entende que a escolha egoísta está em oposição direta às exi­gências da razão. A razão foi dada para que regesse, ou seja, confirmasse a obrigação e assim anunciasse a lei de Deus. Ela confirma a lei e a obrigação moral. A obediência à lei moral, conforme revelada na razão, é virtude. A obediência à sensibilidade em oposição à razão é pecado. Nisso consiste o egoísmo. E desalojar a razão da sede de governo e entronizar o desejo cego em oposição a ela. O egoísmo é sempre e necessariamente irracional. E negar aquele atributo divino que faz o homem aliar-se a Deus, tornar-se apto à vir­tude; é aquilo que o rebaixa ao nível de um bruto. É negar sua humanidade, sua natureza racional. É desacatar a voz de Deus dentro dele e pisar delibera-damente a soberania do próprio intelecto. Ai do egoísmo! Ele destrona a ra­zão humana e destronaria a divina para colocar a mera cobiça cega no trono do universo.
A própria definição de egoísmo implica que a irracionalidade é um de seus atributos. O egoísmo consiste na vontade de ceder aos impulsos da sensibilidade, em oposição às demandas da inteligência. Assim, todo ato ou escolha da vontade é necessariamente de todo irracional. Os pecadores, en­quanto assim permanecem, jamais dizem ou fazem algo de acordo com a ra­zão correta. Assim, a Bíblia diz: "há desvarios no seu coração enquanto vivem" (Ec 9.3). Eles fizeram uma escolha irracional de um fim, e todas as suas escolhas de meios para obter seu fim são apenas um desenrolar de sua esco­lha última. São todas, cada uma delas, executadas para obtenção de um fim contrário à razão. Eles não são irracionais só às vezes, mas de maneira unifor­me e, enquanto permanecerem egoístas, o serão necessariamente. A primeira ocasião em que o pecador age ou deseja de maneira racional é quando ele se volta para Deus, ou se arrepende e se torna cristão. Essa é a primeira ocasião em que ele reconhece, na prática, que possui razão. Antes disso, todas as ações de sua vontade e de sua vida são uma negação prática de sua humanidade, de sua natureza racional, de sua obrigação para com Deus ou seu próximo. Às vezes ouvimos falar de tal modo da impenitência de alguns pecadores, que dá a entender que nem todos os pecadores são assim. Mas isso só favorece o engano dos pecadores, fazendo-os supor que nem todos são o tempo todo totalmente irracionais. Mas o fato é que não há nem pode haver, jamais, na Terra ou no Inferno, um pecador impenitente que, em alguma circunstância, aja de algum modo que não esteja em oposição direta e palpável à própria razão. Assim, seria infinitamente melhor para os pecadores que jamais tives­sem sido dotados de razão. Eles não só agem sem consultar a razão, mas em oposição resoluta e determinada a ela.
De novo: Eles agem em oposição direta à razão em tudo o que podem. Eles não só se opõem à razão, mas se opõem a ela o máximo possível, da maneira mais grave possível. Que pode opor-se à razão de maneira mais direta e grave que o fim escolhido por um pecador? A razão lhe foi dada para dirigi-lo com respeito à escolha do grande fim da vida. Ela lhe dá a idéia do eterno e do infinito. Ela desfralda diante dele os interesses de Deus e do universo, como algo de valor absolutamente infinito. Ela afirma o valor deles e a obrigação infinita de o pecador dedicar-se a esses interesses e lhe promete recompensas sem fim, caso o faça. Por outro lado, ela coloca diante dele as conseqüências da recusa. Ela brada em seus ouvidos as sanções terrí­veis da lei. Ela lhe indica o juízo iminente que aguarda sua recusa em atender às suas exigências. Mas eis que, diante de tudo isso, o pecador, sem hesitar, diante dessas afirmações, exigências e ameaças, dá as costas e dedica-se à satisfação dos próprios desejos com a certeza de que não poderia causar mai­or desprezo à natureza dele mesmo que nessa escolha mais louca, absurda e blasfema. Por que os pecadores não consideram ser-lhes impossível oferecer maior insulto a Deus, que lhes deu a razão, ou envergonhar e degradar a si mesmos de modo mais real e profundo, do que aquilo que fazem em seu ego­ísmo brutal? A irracionalidade total, universal e desavergonhada é a caracte­rística universal de toda mente egoísta.
5. O caráter interesseiro é outro atributo do egoísmo.
Por caráter interesseiro entende-se o interesse próprio. Não é a escolha desinteressada do bem, ou seja, não é a escolha do bem do ser em geral como um fim, mas a escolha do bem próprio, do bem para o eu. Sua relação com o eu é a condição da escolha desse bem. Não fosse o bem para si próprio, ele não seria escolhido. A razão fundamental ou aquilo que induz a escolha, a saber, o valor intrínseco do bem, é rejeitado como algo insuficiente; e a razão secundária, a saber, sua relação com o eu, é a condição que determina a von­tade nessa direção. Isso é de fato fazer do bem próprio o fim supremo. Em outras palavras, é fazer da satisfação própria o fim. Na prática, nada é consi­derado digno de escolha, exceto o que mantém com a pessoa a relação de meio para gratificação própria.
Esse atributo do egoísmo provoca um estado correspondente da sensibili­dade. A sensibilidade, sob essa indulgência, obtém um desenvolvimento mons­truoso, quer em sentido geral, quer em alguns sentidos específicos. O egoís­mo é o compromisso da vontade com a indulgência das propensões. Mas com isso não se segue, de modo algum, que todas as propensões serão permitidas de maneira indiscriminada, sendo, com isso, desenvolvidas ao máximo. Às vezes uma propensão, às vezes outra, possui maior força natural, ganhando, com isso, ascendência no controle da vontade. Às vezes as circunstâncias pro­piciam mais o desenvolvimento de um apetite ou paixão que de outro. A pro­pensão mais indulgenciada, qualquer que seja, alcançará maior desenvolvi­mento. As propensões não podem ser satisfeitas de uma vez, pois muitas ve­zes opõem-se umas às outras. Mas podem ser satisfeitas e desenvolvidas em série. Por exemplo, as propensões licenciosas e várias outras propensões não podem ser satisfeitas em harmonia com a satisfação simultânea de propen­sões avaras, o desejo de reputação e de felicidade maior. Cada uma delas e até todas elas podem ter alguma parte e, em alguns momentos, volume de tole­rância equivalente ao todo que está para ser desenvolvido. Mas, em geral, seja pelo temperamento natural, seja pelas circunstâncias, uma ou mais pro­pensões obterão controle tão completo da vontade, que ocasionarão seu de­senvolvimento monstruoso. Pode ser o amor pela reputação; então haverá pelo menos um exterior público decente, mais ou menos estrito, de acordo com o estado moral da sociedade em que habita o indivíduo. Se o erotismo ganhar ascendência sobre as outras propensões, o resultado será a licenciosidade. Se for a apetência, então o resultado será a glutonaria e o epicurismo. O resultado do egoísmo deve ser o desenvolvimento geral ou específico das pro­pensões da sensibilidade e a geração de um exterior correspondente. Se a ava­reza assume o controle da mente, temos a miséria pálida e maltrapilha. Todas as outras propensões murcham diante do reinado dessa propensão detestá­vel. Onde prevalece o amor pelo conhecimento, temos o erudito, o filósofo e o intelectual. Essa é uma das formas mais decentes e respeitáveis do egoísmo; mesmo assim, é egoísmo; tão absoluto quanto qualquer outra forma de egoís­mo. Quando a compaixão, como sentimento, prevalece, temos como resulta­do o filantropo e, com freqüência, o reformador, não o reformador no sentido virtuoso, mas o reformador egoísta. Onde prevalece o amor pela bondade, muitas vezes temos o marido gentil, o pai, a mãe, a irmã, o irmão carinhoso e assim por diante. São pecadores amáveis, especialmente no seio da própria fa­mília. Quando prevalece o amor à pátria, temos o patriota, o estadista e o solda­do. E possível estender o quadro à vontade, mas depois dessas pinceladas, devo deixá-los preencher os espaços. Só acrescentaria que algumas dessas formas de egoísmo tanto lembram certas formas de virtude que, muitas vezes, são con­fundidas com elas e tomadas por elas. Aliás, no que diz respeito à vida visível, estão corretos na letra, mas, uma vez que não procedem de intenção benevolen­te desinteressada, são apenas formas enganosas de egoísmo.
6. A parcialidade é outro atributo do egoísmo. Ela consiste em dar preferên­cia a certos interesses, ou por serem diretamente interessantes para o eu, ou por estarem de tal modo ligados ao interesse próprio, que são por isso prefe­ridos. Não importa se o interesse a que se dá preferência é de maior ou menor valor, se for preferido, não em razão de seu maior valor, mas por causa de sua relação com o eu. Em alguns casos, a preferência prática pode ser dada, com justiça, a um interesse menor, pelo fato de manter conosco uma relação tal que o torna alcançável, enquanto o interesse maior não poderia ser por nós obtido. Se a razão da preferência, em tal caso, for, não o interesse próprio, mas um interesse que pode ser obtido, enquanto o maior não pode, a preferência é justa, não se caracterizando a parcialidade. Minha família, por exemplo, man­tém comigo relações tais que posso cuidar de seus interesses de modo mais rápido e seguro do que os de meus vizinhos ou um estranho. Por esse motivo, tenho a obrigação de dar preferência prática aos interesses da minha família, não porque é minha nem porque os interesses dela estão ligados aos meus, mas porque posso cuidar melhor de seus interesses do que dos de qualquer outra família.
A questão, em tal caso, depende do volume que posso realizar, e não só do valor intrínseco. É uma verdade geral, que podemos cuidar de modo mais pronto e seguro dos interesses daqueles com quem mantemos certas relações; assim, Deus e a razão destacam esses interesses como objetos específicos de nossa atenção e esforço. Isso não é parcialidade, mas imparcialidade. É tratar os interesses conforme devem ser tratados.
Mas o egoísmo é sempre parcial. Se alguém dá preferência a algum objeto, qualquer que seja, é por causa de suas relações com o eu. Ele dá, sempre e necessariamente, caso permaneça egoísta, a preferência e a maior ênfase àque­les interesses cuja promoção satisfaçam o eu.
Deve-se cuidar aqui de evitar enganos. Amiúde o egoísmo parece muito desinteressado e imparcial. Por exemplo: um homem tem muito desenvolvida a compaixão como um mero sentimento ou estado da sensibilidade. Ele encon­tra um mendigo, fato que atiça fortemente a paixão que o domina. Ele esvazia os bolsos e chega a tirar o paletó para lhe dar e, em seu paroxismo, divide tudo o que tem com ele ou até lhe dá tudo. Ora, em geral isso passaria por virtude indubitável, como exemplo raro e impressionante de bondade moral. Mas não há nisso nem virtude nem benevolência. É uma simples entrega da vontade ao controle do sentimento, não havendo aí algo que caracterize a virtude. E possí­vel aduzir inúmeros exemplos disso como ilustrações dessa verdade. E só um caso e uma ilustração de egoísmo. E a vontade procurando satisfazer o senti­mento de compaixão que, no momento, é o anseio mais forte.
Desejamos, por causa de nossa constituição, não só a nossa felicidade, mas também a dos homens em geral, quando a felicidade deles não entra em con­flito, de modo algum, com a nossa. Assim, os egoístas com freqüência mani­festam um profundo interesse pelo bem-estar de outros cuja felicidade não interfira na deles. Ora, se a vontade render-se à satisfação desse desejo, isso muitas vezes será considerado virtude. Por exemplo: há poucos anos, levan­tou-se um grande interesse e entusiasmo neste país pela causa dos sofrimen­tos dos gregos em sua luta pela liberdade e, depois, pela causa dos poloneses. Surgiu um espírito de entusiasmo e muitos se dispuseram a dar e a fazer quase tudo pela causa da liberdade. Eles empenharam a vontade para a satis­fação desse estado emocional excitado. Talvez supusessem que isso fosse vir­tude; mas não era, nem havia semelhança alguma com virtude, uma vez que se entenda que a virtude consiste em render a vontade à lei da inteligência e não ao impulso de sentimentos incitados.
Alguns autores caem no estranho erro de fazer a virtude consistir em bus­car a satisfação de certos desejos, porque, conforme dizem, esses desejos são virtuosos. Eles consideram alguns desejos egoístas e outros, benevolentes. Render a vontade ao controle de propensões egoístas é pecado; rendê-la ao controle de desejos benevolentes, tais como o desejo em favor da felicidade de meu próximo ou da felicidade pública, é virtude, porque são desejos bons, enquanto os desejos egoístas são maus. Ora, essa é e foi uma concepção muito comum de virtude e vício. Mas está fundamentada num erro. Nenhum dos desejos inatos é bom ou mau em si; todos são igualmente involuntários e todos terminam igualmente em seus objetos correlatas. Render a vontade ao controle de qualquer um deles, não importa qual, é pecado, é seguir um sen­timento, desejo ou impulso cego da sensibilidade, em vez de rendê-la aos clamores da inteligência, como a força que confirma a lei. Desejar o bem de meu próximo ou de meu país e de Deus por causa do valor intrínseco de seus interesses, ou seja, desejá-lo como um fim e em obediência à lei da razão, é virtude; mas desejá-lo para satisfazer um desejo inato, mas cego, é egoísmo e pecado. Os desejos terminam em seus respectivos objetos; mas a vontade, nesse caso, busca os objetos, não por si, mas porque são desejados, ou seja, para satisfazer os desejos. Isso é escolhê-los, não como um fim, mas como um meio de satisfação própria. Isso é fazer da satisfação própria o fim máximo. Isso deve ser uma verdade universal, quando algo é escolhido meramente em obediência ao desejo. A benevolência desses escritores é puro egoísmo e a virtude deles, um vício.
A escolha de algo, seja o que for, por ser desejado, independentemente dos clamores da razão, é egoísmo e pecado. Não importa o que seja. A própria declaração de que escolho algo porque o desejo é só outra forma de dizer que escolho algo para meu proveito ou para apaziguar o desejo, e não por causa de seu valor intrínseco. Todas essas escolhas são sempre e necessariamente parciais. É dar preferência a um interesse sobre outro, não pela percepção de seu valor intrínseco e superior, mas por ser objeto do desejo. Se me rendo a um mero desejo, qualquer que seja o caso, deve ser para satisfazer o desejo. Isso é e deve ser, no caso suposto, o fim para o qual é feita a escolha. Negar isso é negar que a vontade busca o objeto porque ele é desejado. A parcialida­de consiste em dar a um objeto a preferência sobre outro, sem um bom moti­vo. Ou seja, não porque a inteligência exige essa preferência, mas porque a sensibilidade o exige. A parcialidade é, portanto, sempre e necessariamente um atributo do egoísmo.
7. A eficiência é outro atributo do egoísmo. O desejo jamais produz ação antes de influenciar a vontade. Ele não possui em si eficiência ou causalidade. Ele não pode, sem a confluência da vontade, comandar a atenção do intelecto ou mover algum músculo do corpo. Toda a causalidade da mente reside na vontade. Nela reside o poder de realização.
De novo: toda a eficiência da mente, no que se refere à realização, reside na escolha de um fim ou na intenção última. Toda ação da vontade ou todas as vontades devem consistir na escolha ou de um fim ou do meio para atingir um fim. Se houver escolha, algo é escolhido. Esse algo é escolhido por algum motivo. Negar isso é negar que algo seja escolhido. A razão última para a escolha e o objeto escolhido são idênticos. Isso vimos várias vezes.
Repito: vimos que o meio não pode ser escolhido antes que se escolha o fim. A escolha do fim é distinta das volições ou esforços da mente para obter o fim. Mas ainda que a escolha de um fim não equivalha às escolhas e volições subordinadas para obtenção do fim, aquela necessita dessas. A escolha, uma vez feita, assegura ou exige as volições executivas para obtenção do fim. Com isso não se quer dizer que a mente não seja livre para desistir de seu fim e, é claro, desistir de usar os meios para atingi-lo; mas apenas que, enquanto per­manecer a escolha ou intenção, o ato de a vontade escolher um fim é eficiente na produção de volições para atingir o fim. Isso diz respeito tanto à benevo­lência como ao egoísmo. Ambos são escolhas de um fim, sendo necessaria­mente eficientes em manifestar o uso dos meios para obtenção desse fim. São escolhas de fins opostos e, é claro, produzirão seus respectivos resultados.
A Bíblia representa os pecadores como pessoas com olhos cheios de adul­tério, pessoas que não conseguem parar de pecar; que, enquanto a mente se rende à indulgência das propensões, não podem largar a indulgência. Não há meio, portanto, de o pecador escapar da comissão do pecado, senão pelo aban­dono do egoísmo. Enquanto continuar o egoísmo, você pode mudar a forma da manifestação externa; você pode negar um apetite ou desejo para dar lu­gar a outro; mas isso ainda é, precisa ser, pecado. O desejo de escapar do Inferno e obter o Céu pode dominar; nesse caso, o egoísmo assumirá um as­pecto muito santarrão. Mas se a vontade estiver seguindo o desejo, ainda é egoísmo; e todas as suas responsabilidades religiosas, como as chamam, são apenas egoísmo revestido dos hábitos roubados da obediência a Deus gerada pelo amor.
Lembrem-se, portanto, que o egoísmo é, precisa ser, eficiente na produção de seus efeitos. É uma causa; é necessário que se siga o efeito. Toda a vida e as atividades dos pecadores estão nele fundadas. Nisso consiste a vida deles ou, antes, a morte espiritual deles. Eles estão mortos em transgressões e pecados. É-lhes inútil sonhar fazer algo bom, a menos que deixem o egoísmo. Enquan­to continuarem, não terão ação qualquer, exceto quando usarem os meios para atingir um fim egoísta. É impossível, enquanto a mente permanecer entregue a um fim egoísta ou à promoção do interesse próprio ou satisfação própria, que use os meios para promover um fim benevolente. Primeiro deve-se mu­dar o fim; então, depois, o pecador pode se afastar do pecado externo. Aliás, se o fim for trocado, muitos dos mesmos atos que antes eram pecaminosos tornar-se-ão santos. Enquanto permanecer o fim egoísta, tudo o que o peca­dor fizer será egoísta. Quer ele coma, beba, trabalhe ou pregue, ou, em suma, seja lá o que fizer, será para promover alguma forma de interesse próprio. Estando errado o fim, tudo é, precisa ser, errado.
Essa é a filosofia de Cristo. "Ou dizeis que a árvore é boa e o seu fruto, bom, ou dizeis que a árvore é má e o seu fruto, mau; porque pelo fruto se conhece a árvore. O homem bom tira boas coisas do seu bom tesouro, e o homem mau do mau tesouro tira coisas más" (Mt 12.33,35); "Porventura, dei­ta alguma fonte de um mesmo manancial água doce e água amargosa? Meus irmãos, pode também a figueira produzir azeitonas ou a videira, figos? As­sim, tampouco pode uma fonte dar água salgada e doce" (Tg 3.11,12); "Por­que não há boa árvore que dê mau fruto, nem má árvore que dê bom fruto. Porque cada árvore se conhece pelo seu próprio fruto; pois não se colhem figos dos espinheiros, nem se vindimam uvas dos abrolhos. O homem bom, do bom tesouro do seu coração, tira o bem, e o homem mau, do mau tesouro do seu coração, tira o mal, porque da abundância do seu coração fala a boca" (Lc 6.43-45).
8. A oposição a benevolência ou à virtude, ou à santidade e à verdadeira reli­gião, é um dos atributos do egoísmo.
O egoísmo não é, em suas relações com a benevolência, uma simples nega­ção. Não pode ser. É a escolha da satisfação própria como o supremo e último fim da vida. Enquanto a vontade se empenha nesse fim e a benevolência ou uma mente comprometida com um fim oposto é considerada, a mente não pode permanecer num estado de indiferença para com a benevolência. Ela precisa ceder à sua preferência pela satisfação própria ou resistir à benevolên­cia percebida pelo intelecto. A vontade não pode permanecer no exercício dessa escolha egoísta, sem que esteja como que se revigorando e cingindo contra tal virtude a que não imita. Se não a imita, deve ser porque se recusa a fazê-lo. O intelecto insta e deve instar fortemente a vontade a imitar a benevolência e a buscar o mesmo fim. A vontade deve ceder ou resistir, e a resistência deve ser mais ou menos resoluta e determinada, conforme as demandas do intelecto sejam mais ou menos enfáticas. Essa resistência à benevolência ou às deman­das do intelecto diante disso é o que a Bíblia denomina endurecer o coração. Trata-se de obstinação, sob a luz e a presença da verdadeira religião e as ale­gações aceitas da benevolência.
Essa oposição à benevolência ou verdadeira religião deve ser desenvolvi­da em ação específica, sempre que a mente percebe a verdadeira religião, ou seja, o egoísmo precisa ser abandonado. Não só é preciso que essa oposição se desenvolva, ou o egoísmo seja abandonado sob tais circunstâncias, mas ela deve aumentar à medida que a verdadeira religião manifestar mais e mais sua bondade. Quando a luz radiante do sol da benevolência é derramada mais e mais sobre as trevas do egoísmo, a oposição desse princípio de ação deve necessariamente manifestar-se na mesma proporção, ou seja, o egoísmo precisa ser abandonado. Assim, o egoísmo que permanece sob a luz precisa ma­nifestar oposição crescente, na proporção exata do aumento da luz, e a alma tem menos margem para uma apologia de sua oposição.
Essa peculiaridade do egoísmo sempre é manifestada na proporção exata em que é trazida à luz da verdadeira religião. Isso responde por toda a oposi­ção feita à verdadeira religião desde o início do mundo. Isso também prova que onde há pecadores impenitentes que mantêm a impenitência e não mani­festam qualquer hostilidade à religião que presenciam, há alguma falha na piedade professa que eles presenciam ou, pelo menos, que não contemplam todos os atributos da verdadeira piedade. Isso também prova que a persegui­ção sempre existirá onde houver grande manifestação da religião verdadeira para os que se apegam ao egoísmo.
É de fato verdade que o egoísmo e a benevolência são opostos entre si e guerreiam necessariamente entre si, do mesmo modo que Deus e Satanás, como o Céu e o Inferno. Jamais pode haver uma trégua entre eles; são opostos em essência, eternamente. Não são meros opostos, mas causas opostas eficien­tes. São atividades essenciais. São os dois, os únicos dois, grandes princípios antagônicos no universo da mente. Cada um se eleva e junta forças como um terremoto para atingir seu fim. Existe necessariamente uma guerra de exterminação mútua, sem concessões, entre eles. Um não pode estar na pre­sença do outro, sem repulsa e oposição. Cada um empenha toda a energia para subjugar e vencer o outro; e o egoísmo já derramou um oceano de san­gue de santos, bem como o sangue precioso do Príncipe da vida. Não há erro mais crasso e injurioso do que supor que o egoísmo, em algum momento, sob alguma circunstância, possa conciliar-se com a benevolência. A suposição é absurda e contraditória; já que o egoísmo conciliar-se com a benevolência se­ria o mesmo que o egoísmo tornar-se benevolente. O egoísmo pode mudar seu modo de ataque ou oposição, mas sua oposição não pode mudar jamais, enquanto mantiver a própria natureza e continuar sendo egoísmo.
Essa oposição do coração à benevolência muitas vezes gera profunda opo­sição do sentimento. A oposição da vontade empenha o intelecto na produção de desculpas, e sofismas, e mentiras, e recursos, e muitas vezes provoca gran­des perversões nos pensamentos, incitando os sentimentos mais amargos que se possam imaginar em relação a Deus e aos santos. O egoísmo se empenhará para justificar sua oposição e para se proteger contra as censuras da consciên­cia, recorrendo a todo expediente possível para encobrir sua verdadeira hos­tilidade à santidade. Ele fingirá não ser a santidade, mas o pecado, o objeto de sua oposição. Mas o fato é que sua oposição eterna não é contra o pecado, mas contra a santidade. A oposição do sentimento só é desenvolvido quando o coração é levado para baixo de uma luz potente, criando resistência forte e profunda. Nesses casos, a sensibilidade às vezes fervilha de sentimentos de oposição ferrenha a Deus, a Cristo e a todo bem.
Pergunta-se muitas vezes: Não é possível existirem essa oposição na sensi­bilidade e esses sentimentos de hostilidade, estando o coração em condição verdadeiramente benevolente? A essa indagação eu responderia: Se for possí­vel, isso deve ser produzido por uma influência infernal ou alguma outra influência que desvirtua a Deus, colocando diante da mente uma noção falsa de seu caráter. Pensamentos blasfemos podem ser sugeridos e como que inje­tados na mente. Esses pensamentos podem provocar seu efeito natural na sensibilidade, e sentimentos de amargura e hostilidade podem existir sem o consentimento da vontade. A mente pode, enquanto isso, empenhar-se em repelir essas sugestões, divergindo a atenção de tais pensamentos; ainda as­sim, Satanás pode continuar lançando seus dardos inflamados, torturando a alma com o veneno do Inferno que parece fazer efeito na sensibilidade. A mente, nesses momentos, parece estar repleta, no que diz respeito ao senti­mento, de toda a amargura do Inferno. E, mesmo assim, pode ocorrer de não haver egoísmo algum. Se a vontade mantém sua integridade; se mantém sua luta, diz como Jó: "Ainda que ele me mate, nele esperarei" (Jó 13.15), por mais duro que seja o conflito nesses casos, podemos olhar para trás e dizer: "Somos mais do que vencedores, por aquele que nos amou" (Rm 8.37). Nesses casos, é o egoísmo de Satanás, e não o nosso, que atiçou as chamas do Inferno em nossa sensibilidade. "Bem-aventurado o varão que sofre a tentação; porque, quando for provado, receberá a coroa da vida" (Tg 1.12).
9. A crueldade é outro atributo do egoísmo.
Esse termo é muitas vezes usado para designar um estado da sensibilidade. Nesse caso, representa aquele estado de sentimento que manifesta um prazer bárbaro ou selvagem na aflição dos outros. A crueldade, como fenômeno da vontade ou atributo do egoísmo, consiste, primeiro, na falta de interesse e pre­ocupação com o bem-estar de Deus e do universo e, depois, na perseverança num curso que deve destruir a alma dos que são sujeitados a ela e, dentro de seu raio de influência, destruir a alma dos outros. Que pensar de um homem tão empenhado em obter alguma gratificação insignificante, a ponto de não dar o alarme, estando em fogo a cidade e os cidadãos dormindo sob perigo iminen­te de perecer nas chamas? Suponham que antes de negar a si alguma gratifica­ção monetária, ele arriscaria muitas vidas. Não devemos considerar isso uma crueldade? Ora, há várias formas de crueldade. Uma vez que nem sempre são levados a circunstâncias em que exerçam certas formas de crueldade, alguns pecadores orgulham-se de não serem cruéis. Mas o egoísmo é, sempre e necessariamente, cruel — cruel para com a alma e os interesses últimos daquele que se sujeita a ele; cruel para com a alma dos outros, ao negligenciar o cuidado e a ação em favor de sua salvação; cruel para com Deus, ao abusar dele de diversas maneiras; cruel para com todo o universo. Se ficamos chocados com a cruelda­de daquele que vê a casa do vizinho em chamas e a família adormecida e deixa de dar o alerta por ser muito preguiçoso para levantar-se da cama, que diremos da crueldade daquele que vê a alma de seu próximo em perigo de morte eterna e, mesmo assim, não lhe dá o alerta?
Os pecadores são capazes de possuir boas disposições, conforme expres­sam. Esses supõem serem o oposto de cruéis. Eles possuem sentimentos de bondade, com freqüência são muito compassivos em seus sentimentos para com os que estão doentes e em angústia e para com os que estão em alguma situação aflitiva. Estão dispostos a fazer muito por eles. Tais pessoas ficari­am perplexas, caso fossem consideradas cruéis. E muitos estudiosos tomari­am o partido deles, considerando-os ofendidos. Quaisquer que fossem, di­riam eles, os atributos do caráter deles, com certeza não incluiriam a cruel­dade. Ora, é verdade que há certas formas de crueldade de que tais pessoas não são culpadas. Mas isso só ocorre porque Deus moldou-lhes a constitui­ção de tal maneira que não de comprazem com a aflição do próximo. Entre­tanto, não há virtude no fato de não se agradarem ao ver o sofrimento, nem em seu empenho em evitar-lhes o sofrimento, enquanto permanecem egoís­tas. Eles seguem os impulsos dos sentimentos, e se o temperamento deles fosse tal que lhes alegrasse infligir sofrimento aos outros — se essa fosse a tendência mais forte de sua sensibilidade, o egoísmo deles tomaria de ime­diato essa forma. Mas embora a crueldade, em todas as suas formas, não seja comum a todos os egoístas, ainda é verdade que alguma forma de cru­eldade é praticada por todo pecador. Deus diz: "As misericórdias dos ímpios são cruéis" (Pv 12.10). O fato de viverem no pecado, de serem exemplo de egoísmo, de nada fazerem pela própria alma nem pela alma dos outros; es­sas são na realidade formas muito atrozes de crueldade, excedendo em grau infinito todas aquelas formas comparativamente banais que dizem respeito às aflições dos homens nesta vida.
10. A injustiça é outro atributo do egoísmo.
A justiça, como atributo da benevolência, é aquela qualidade que se dis­põe a considerar e tratar cada ser e interesse com justa eqüidade. A injustiça é o oposto disso. E aquela qualidade do egoísmo que se dispõe a tratar as pessoas e os interesses dos outros sem eqüidade e uma disposição de dar preferência ao interesse próprio, independentemente do valor relativo dos interesses. A natureza do egoísmo demonstra que a injustiça é sempre e necessariamente um de seus atributos, atributo manifestado de maneira uni­versal e constante.
Há uma injustiça última no fim escolhido. E a preferência prática de um interesse pessoal insignificante contra interesses infinitos. Essa é a maior in­justiça possível. Trata-se de uma injustiça universal contra Deus e os homens. Trata-se do caso de injustiça mais palpável e flagrante possível contra todos os seres do universo. Não existe ninguém que não tenha motivo para acusá-lo da mais flagrante e escandalosa injustiça. Essa injustiça estende-se a todo ato e a todo momento da vida. A pessoa jamais é, em grau algum, justa para com qualquer ser no universo. Antes, é perfeitamente injusta. Ela não tem qual­quer consideração com os direitos dos outros como tais; e jamais, mesmo apa­rentemente, os considera, exceto por motivos egoístas. Isso, portanto, só é, só pode ser, aparência de consideração para com eles, quando na verdade, ne­nhum direito de qualquer ser do universo é ou pode ser respeitado por uma mente egoísta, senão em mera aparência. Negar isso é negar o egoísmo. A pessoa não realiza um ato, qualquer que seja, senão por uma razão, a saber, promover a satisfação própria. Esse é seu fim. Para a realização desse fim é feito todo esforço e desencadeado cada ato e cada volição. Permanecendo egoísta, é impossível que consiga agir, senão em referência direta ou indireta a esse fim. Mas esse fim foi escolhido e deve ser perseguido, caso o seja, na mais palpável e feroz violação dos direitos de Deus e de cada criatura no universo. A justiça exige que a pessoa se dedique à promoção do máximo bem de Deus e do universo, que ame a Deus com todo o coração e ao próximo como a si mesma. Todo pecador é tão aberta, universal e perfeitamente injus­to quanto possível, a cada momento de sua impenitência. Deve-se, portanto, compreender sempre que nenhum pecador, em momento algum, é em algu­ma medida justo para com algum ser no universo. Todas as dívidas que paga e toda sua aparente imparcialidade e justiça são apenas formas sutis de egoís­mo. Sendo pecador, ele possui, e é impossível que não possua, algum motivo egoísta para tudo o que faz, é, diz ou omite. Toda sua atividade é egoísmo e, enquanto permanece impenitente, é-lhe impossível pensar, agir, intentar, fa­zer, ser ou dizer nada mais nada menos, senão aquilo que julgue conveniente para promover os próprios interesses. Ele não é justo. Não pode ser justo nem começar, em ocasião alguma, mesmo que em grau mínimo, a ser verdadei­ramente justo, seja para Deus, seja para os homens, antes de começar uma vida nova, dar a Deus o coração e consagrar todo o ser à promoção do bem do ser universal. Isso, tudo isso, é o que exige a justiça. Nem se começa a ser justo, a menos que o pecador comece por aqui. Comece a ser justo, seja jus­to, na escolha do grande fim da vida, e então só poderá ser justo no uso dos meios. Mas seja injusto na escolha de um fim, e será impossível, em qual­quer hipótese, agir de outra maneira, senão totalmente injusta no uso dos meios. Nesse caso, toda sua atividade é, só pode ser, nada mais que amostra da mais abominável injustiça.
A única razão pela qual todo pecador não pratica de modo aberto e diário todo tipo de injustiça comercial visível é que suas circunstâncias são tais que, no todo, ele julga não ser proveitoso para si praticar essa injustiça. Essa é a razão universal, e não importa que algum pecador se abstenha, em qualquer momento, de algum tipo ou grau de injustiça na prática, pois ele só é limitado e impedido por considerações egoístas. Ou seja, ele é egoísta demais para fazê-lo. Seu egoísmo, e não o amor por Deus ou pelos homens, o impede. Ele pode ser impedido por uma consciência natural ou frenológica, ou senso de justiça. Mas trata-se só de um sentimento da sensibilidade, e, caso impedido apenas por isso, é absolutamente egoísta, tanto quanto o seria se tivesse rou­bado um cavalo em obediência à cobiça. Deus tempera a natureza dos ho­mens para restringi-los, ou seja, faz com que um tipo de egoísmo prevaleça sobre o outro e o reprima. Na maioria das pessoas, a vontade de obter aprova­ção dos homens é tão grande, que esse desejo lhes modifica o desenvolvimen­to do egoísmo, de modo que ele toma a forma de decência externa e aparência de justiça. Mas isso não é menos egoísta do que seria se houvesse tomado forma totalmente diferente.
11. A falsidade ou a mentira é outro atributo do egoísmo.
A falsidade pode ser objetiva ou subjetiva. A falsidade objetiva é a que se opõe à verdade. A falsidade subjetiva é um coração conformado com o erro e com a falsidade objetiva. A falsidade subjetiva é um estado mental ou um atributo do egoísmo. E a vontade numa atitude de resistência à verdade e apego ao erro e às mentiras. Isso é sempre e necessariamente um atributo do egoísmo.
O egoísmo consiste na escolha de um fim oposto a toda verdade e não pode senão passar à realização desse fim, em conformidade com o erro ou falsidade, em lugar da verdade. Se em algum momento ele lança mão da ver­dade objetiva, como faz com freqüência, é com falsa intenção. É com a inten­ção em guerra com a verdade, a natureza e as relações das coisas.
Se algum pecador, em algum momento e em alguma circunstância, diz a verdade, é por um motivo egoísta; é para obtenção de um fim falso. Ele pos­sui uma mentira no coração e uma mentira na mão direita. Ele se firma na falsidade. Ele vive para isso, e se não falsifica a verdade de maneira constante e aberta, é porque a verdade objetiva é coerente com a falsidade subjetiva. Seu coração é falso, tão falso quanto possível. Seu coração abraçou a maior mentira do universo e vendeu-se a ela. Na prática, o egoísta proclamou que seu bem é o bem supremo; além disso, que não há outro bem, senão o dele; que não há outros direitos, senão os dele; que todos devem servi-lo e que todos os interesses devem contribuir para o dele. Ora, tudo isso, conforme eu disse, é a maior falsidade que já houve ou pode haver. Ainda assim, essa é a solene declaração prática de todo pecador. Sua escolha afirma que Deus não tem direitos, que não se deve amar e obedecer a Deus, que Deus não tem o direito de governar o universo, mas que Deus e todos os seres devem obedecer e servir ao pecador. É possível haver falsidade maior e mais desavergonhada que essa? E tal pessoa fingiria em relação à verdade? Também sim, com certe­za. O próprio fingimento é só um exemplo e ilustração da verdade de que a falsidade é um elemento essencial de seu caráter.
Se todo pecador sobre a Terra não falsifica de maneira aberta, a todo mo­mento, a verdade, não é pela veracidade de seu coração, mas por algum mo­tivo puramente egoísta. É preciso que assim seja. Seu coração é totalmente falso. E impossível que, permanecendo pecador, tenha alguma consideração para com a verdade. Ele é um mentiroso no coração; esse é um atributo essen­cial e eterno de seu caráter. E verdade que seu intelecto condena a falsidade e justifica a verdade, e que, com freqüência, por meio do intelecto, existe em sua sensibilidade a presença ou a formação de uma profunda impressão em favor da verdade; mas se o coração não for mudado, ele se apega às mentiras e mantém, na prática, a proclamação da maior mentira do universo, a saber, que não se deve acreditar em Deus, que Cristo não merece confiança, que o interesse próprio é o bem supremo; e que todos os interesses devem ser consi­derados de menor valor que os próprios.
12. O orgulho é outro atributo do egoísmo.
O orgulho é uma disposição de exaltar a nós mesmos acima dos outros, de descer do devido lugar na escala da existência e subir pisando a cabeça de nossos iguais ou superiores. O orgulho é, por um lado, uma espécie de injustiça e, por outro, quase igual à ambição. Não é um termo tão abrangente como a injustiça ou a ambição. O orgulho mantém com ambos uma relação de proximidade, mas não é idêntico a nenhum deles. E uma espécie de auto-elogio, autolatria, auto-agrado, auto-adulação, um espírito de presunção, de vaidade. E uma tendência de exal­tar, não só o próprio interesse, mas a si mesmo acima dos outros, acima de Deus e acima de todos os outros seres. Um ser orgulhoso considera acima de tudo a si próprio. Ele só cultua, só pode cultuar, a si próprio. Ele não admite e, permane­cendo egoísta, não consegue admitir que haja alguém tão bom ou digno quanto si próprio. Ele almeja conferir o favor supremo a si mesmo e, na prática, não admite que qualquer ser no universo tenha direito a algum bem ou interesse que interfira nos seus. Ele não consegue humilhar-se para dar preferência ao interes­se, reputação ou autoridade de alguém, nem ao próprio Deus, exceto de maneira exterior e aparente. Sua fala interna é: "Quem é Jeová, que me prostre a ele?" É impossível que uma alma egoísta seja humilde. Os pecadores são representados na Bíblia como orgulhosos, "prudentes diante de si mesmos" (Is 5.21).
O orgulho não é um vício diferente do egoísmo, mas é só uma modalidade de egoísmo. O egoísmo é a raiz ou cepo de que brotam todas as formas de pecado. É importante mostrar isso. Muitos nem chegam a considerar o egoísmo vício, quanto menos todo o vício; por conseguinte, quando o egoísmo é muito aparente, su­põem e assumem que junto com ele possam estar muitas formas de virtude. É por isso que faço esta tentativa de reconhecer os elementos essenciais do egoís­mo. Supõe-se que o egoísmo deva existir em qualquer coração, sem que implique toda forma de pecado; que a pessoa pode ser egoísta e, mesmo assim, não ser orgulhosa. Em suma, não se tem percebido que onde existe o egoísmo, deve ha­ver toda forma de pecado; que onde se manifesta uma forma de egoísmo, existe virtualmente uma transgressão de todos os mandamentos de Deus, implicando, na realidade, a existência real de todas as formas possíveis de pecado e abominação no coração. Meu objetivo é desenvolver plenamente a grande verdade de que onde existe o egoísmo, deve existir, num estado desenvolvido ou não desenvol­vido, toda forma de pecado que existe na Terra ou no Inferno; que todo pecado é uma unidade e consiste em alguma forma de egoísmo; e que onde existe isso, existe e deve existir virtualmente todos os pecados.
O único motivo pelo qual o orgulho, como forma de egoísmo, não aparece em todos os pecadores, nas formas mais repugnantes, é só isso: que o tempe­ramento natural deles e circunstâncias provindenciais são tais, que dão de­senvolvimento mais proeminente a alguns outros atributos do egoísmo. E importante observar que onde existe alguma forma absoluta de pecado, é pre­ciso que exista o egoísmo, e ali, é claro, deve existir toda forma de pecado, pelo menos de modo embrionário, só à espera de circunstâncias para desenvolvê-la. Quanto, portanto, se vê alguma forma de pecado, deve-se sa­ber com certeza que o egoísmo, a raiz, está presente; e não se espera algo mais, se o egoísmo continuar, do que ver desenvolvidas, uma após outra, to­das formas de pecado, conforme apresentarem-se as ocasiões. O egoísmo é um vulcão, às vezes abafado, mas que precisa de via de escape. A providência de Deus não pode deixar de apresentar ocasiões em que suas marés de lavas irrompam, levando desolação diante de si.
Que todas essas formas de pecado existem é sabido e admitido. Mas não me parece que a filosofia do pecado tenha sido devidamente considerada por muitos. É importante que cheguemos à forma fundamental ou genérica do pecado, aquela forma que inclui e implica todas as outras ou, mais exatamen­te, que constitui o pecado em si. Esse é o egoísmo. "O pecado está escrito com um ponteiro de ferro, com ponta de diamante, gravado na tábua para sem­pre" (Jr 17.1); saiba-se que onde existe egoísmo, ali são violados todos os pre­ceitos, ali existe todo o pecado. Sua culpa e desmerecimento devem depender da luz que circunda a mente egoísta. Mas o pecado, todo o pecado, está pre­sente. Tal é a natureza do egoísmo, que só é preciso que haja ocasiões provi­denciais e que não se imponham limites a ela, que ele provará ter incorpora­do, em forma embrionária, toda forma de iniqüidade.
13. A inimizade contra Deus é também um atributo do egoísmo.
Inimizade é ódio. O ódio pode existir ou como um fenômeno da sensibili­dade, ou como um estado ou atitude da vontade. E egoísmo visto em suas relações com Deus. Que o egoísmo é inimizade contra Deus é manifesto:
(1)  Na Bíblia. O apóstolo Paulo diz expressamente que "a inclinação da carne (a mente carnal) é inimizade contra Deus" (Rm 8.7). É plenamente ób­vio que, por mente carnal, o apóstolo Paulo quer dizer obedecer às propensões ou satisfação dos desejos. Mas isso, conforme o defini, é egoísmo.
(2) O egoísmo opõe-se diretamente à vontade de Deus conforme expressa em sua lei. Esta exige benevolência. O egoísmo é seu oposto e, portanto, ini­mizade contra o legislador.
(3) O egoísmo é tão hostil quanto possível ao governo de Deus. Ele é dire­tamente oposto a toda lei, princípio e medida de seu governo.
(4) O egoísmo é uma oposição à existência de Deus. Oposição a um gover­no, oposição à vontade do governante. E oposição à sua existência nessa ca­pacidade. E e precisa ser inimizade contra a existência do governante, como tal. O egoísmo deve ser inimizade contra a existência do governo de Deus, e uma vez que Deus mantém e precisa manter a relação de Governante Sobera­no, o egoísmo deve ser inimizade contra o Ser divino. O egoísmo não tolerará limitações com respeito à obtenção de seu fim. Nada existe no universo que não sacrifique em favor de si. Se isso não for verdade, não é egoísmo. Se, portanto, a felicidade, o governo ou o ser divino competem com ele, devem ser sacrificados, se o egoísmo conseguir realizar isso. Mas Deus é o inimigo intransigente do egoísmo. Trata-se de algo abominável que sua alma odeia. Ele mais obstrui o caminho do egoísmo que todos os outros seres. Para ele, a oposição ao egoísmo é e precisa ser suprema e perfeita. Que o egoísmo é ini­mizade moral contra Deus não é conjectura, uma mera dedução ou inferência. Deus assumiu a natureza humana e levou a benevolência divina a um confli­to com o egoísmo humano. Os homens não conseguiam tolerar sua presença sobre a Terra e não descansaram até matá-lo.
A inimizade contra qualquer corpo ou coisa além de Deus pode ser vencida com mais facilidade do que a inimizade contra Deus. Todas as inimizades terrenas podem ser superadas pela bondade e pela mudança de circunstânci­as; mas que bondade, que mudança de circunstâncias pode mudar o coração humano, pode superar o egoísmo ou a inimizade contra o Deus que ali reina? O egoísmo oferece todas as maneiras e todos os graus possíveis de resistência a Deus. O egoísmo desconsidera os mandamentos de Deus. Ele condena sua autoridade. Ele desdenha sua misericórdia. Ele ultraja seus sentimentos, Ele provoca sua paciência. O egoísmo, em suma, é o antagonista universal e ad­versário de Deus. O egoísmo não pode ser conciliado com a lei de Deus, assim como não pode parar de ser egoísta.
14. A intemperança é também uma forma ou atributo do egoísmo.
O egoísmo é auto-indulgência não sancionada pela razão. O egoísmo con­siste no empenho da vontade à indulgência das propensões. É claro que uma ou mais das propensões deve ter assumido o controle da vontade. Em geral, existe alguma paixão ou propensão dominante, cuja influência eclipsa as ou­tras e governa a vontade para satisfação própria. Às vezes trata-se da cobiça ou avareza, o amor pelo lucro; às vezes a glutonaria ou o epicurismo; às vezes o erotismo ou o amor sexual; às vezes o amor pelos próprios filhos; às vezes a auto-estima ou um sentimento de autoconfiança; às vezes uma e às vezes outra da grande variedade de propensões desenvolve-se de tal maneira, che­gando a ser um tirano, governando a vontade e todas as outras propensões. Não importa qual das propensões ou se sua influência única obtém o con­trole da vontade: sempre que a vontade está sujeita a elas, isso é egoísmo. É a mente carnal.
A intemperança consiste na indulgência indevida ou ilegítima de qual­quer propensão. E, portanto, um elemento ou atributo essencial do egoís­mo. Todo egoísmo é intemperança; é evidente que se trata de uma indul­gência ilegítima das propensões. A intemperança possui tantas formas quanto o número de apetites naturais e artificiais a serem satisfeitos. Uma mente egoísta não pode ser moderada. Se uma ou mais das propensões é restringida, só é restringida a bem da indulgência indevida e ilegítima de outra. Às vezes as tendências são intelectuais, e os apetites físicos são ne­gados, para que seja satisfeito o amor pelo estudo. Mas isso não é menos intemperante e egoísta que a satisfação do erotismo ou da glutonaria. O egoísmo é sempre e necessariamente imoderado. Não é freqüente nem co­mum desenvolver toda forma de intemperança na vida exterior, mas um espírito de auto-indulgência deve manifestar-se na satisfação intemperante de uma ou mais das propensões.
Alguns desenvolvem a auto-indulgência proeminentemente na forma de intemperança no comer; outros, no dormir; outros, na preguiça e ociosida­de; outros são bisbilhoteiros; outros amam exercícios e condescendem com tal propensão; outros estudam e prejudicam a saúde, induzindo desarranjos ou prejudicam seriamente o sistema nervoso. Aliás, não há fim às formas assumidas pela intemperança, que brotam do fato de haver grande número de propensões, naturais e artificiais, que, por sua vez, procuram obter in­dulgência.
Deve-se ter sempre em mente que qualquer forma de auto-indulgência, propriamente dita, é também um caso de egoísmo, sendo de todo incoerente com qualquer grau de virtude no coração. Mas pode-se perguntar: não deve­mos ter qualquer consideração por nossos gostos, apetites e propensões? Res­pondo: não podemos ter qualquer consideração com eles, fazendo da gratifi­cação deles o fim para o qual vivermos, mesmo que por um momento. Mas há um tipo de consideração com eles que é legítimo e, portanto, virtuoso. Tenho dois caminhos diante de mim. Um não oferece algo que regale os sentidos; o outro me conduz por uma variedade de cenários, desfiladeiros sublimes, ravinas profundas; ao lado de nascentes borbulhantes e córregos serpenteantes; através de bosques aromáticos e coros florestais com cantores emplumados. As duas rotas são iguais em distância, e em todos os aspectos estão ligadas com o objetivo que tenho em mente. Ora, a razão dita e exige que eu tome o caminho mais agradável, que me sugira pensamentos úteis. Mas isso não é ser governado pelas propensões, mas pela razão. E sua voz que ouço e a ela que dou ouvidos, quando tomo o caminho ensolarado. Os prazeres desse ca­minho são um bem real. Como tais, não devem ser desprezados nem negli­genciados. Mas se tomar esse rumo confunde e atrapalha o fim de minha jor­nada, não posso sacrificar o bem público maior por um menor, só meu. Não posso ser guiado por meus sentimentos, mas pela razão e pelo julgamento honesto nesse e em todos os casos de dever. Deus não nos deu propensões para que fossem nossas dominadoras, governando-nos, mas para serem nos­sas servas e ministrarem para nosso prazer, quando obedecemos às ordens da razão e de Deus. Elas nos são dadas para fazer com que o dever seja agradá­vel e como um prêmio da virtude, para tornar agradáveis os caminhos da sabedoria. As propensões não devem, portanto, ser desprezadas, nem se deve desejar sua aniquilação. Também não é verdade que sua satisfação seja sem­pre egoísta, mas quando sua satisfação é sancionada e exigida pelo intelecto, como no caso acima suposto e em miríades de outros casos que ocorrem, a satisfação não é pecado, mas virtude, Não é egoísmo, mas benevolência. Mas é preciso lembrar que a indulgência não deve ser buscada em obediência à propensão em si, mas em obediência à lei da razão e de Deus. Quando a razão e a vontade de Deus não só deixam de ser consultadas, mas são violadas, existe necessariamente o egoísmo.
A intemperança, como pecado, não consiste no ato externo da indulgên­cia, mas na disposição interna. O dispéptico que só consegue comer o mínimo para manter-se vivo pode ser um enorme glutão no íntimo. Ele pode ter dis­posição, ou seja, talvez ele não só deseje, mas se disponha, a comer tudo o que está diante de si, exceto pelo sofrimento que a indulgência lhe causa. Mas esse é só o espírito da auto-indulgência. Ele nega a si mesmo a quantidade de alimento que deseja para satisfazer uma propensão mais forte, a saber, o medo do sofrimento. Assim, quem jamais se embriagou nesta vida pode ser culpa­do do crime de bebedeira todos os dias. Ele pode ser impedido de beber até embriagar-se, só por considerar a reputação ou a saúde, ou por alguma dis­posição avara. Isso só ocorre porque é impedido pelo poder maior de alguma outra propensão. Se um homem estiver em estado mental que daria vazão a todas as suas propensões, sem limites, caso isso não fosse impossível, porque a indulgência de alguma é incoerente com a indulgência de outras, ele será exatamente tão culpado quanto seria se desse lugar a todas elas. Por exemplo: ele possui uma disposição, uma vontade, de acumular propriedades. Ele é avarento no coração. Ele também possui uma forte tendência ao luxo, à licenciosidade e à prodigalidade. A indulgência dessas propensões é incoerente com a indulgência da avareza. Mas, a não ser por essa contrariedade, ele apre­sentaria um estado mental que daria vazão a todas elas. Ele deseja fazê-lo, mas é impossível. Ora, ele é de fato culpado de todas essas formas de vício, e tão culpável quanto seria se desse vazão a todas elas.
A intemperança, como um crime, é um estado mental. É a atitude da von­tade. E um atributo do egoísmo. Ela consiste na escolha ou disposição de sa­tisfazer as propensões, independentemente da lei da benevolência. Isso é intemperança; e no que diz respeito à mente, é toda a intemperança. Ora, uma vez que a vontade está devotada à auto-indulgência e nada, senão a contrari­edade existente entre as propensões, impede a indulgência ilimitada de todas elas, segue-se que, diante de Deus, toda pessoa egoísta ou, em outras pala­vras, todo pecador, é culpável de toda espécie de intemperança, real ou concebível. Suas luxúrias possuem o reinado. Elas o conduzem para onde que­rem. Ele se vendeu à auto-indulgência. Se houver alguma forma de auto-in­dulgência não desenvolvida de fato nele, isso não cabe a ele. A providência de Deus impede a indulgência ilimitada, embora nele exista uma prontidão de perpetrar todo e qualquer pecado dos quais não foi afastado por algum medo dominante das conseqüências.
15. A depravação moral total está implicada no egoísmo como um de seus atributos. Com isso quero dizer que todo ser egoísta é a todo momento tão perverso e culpável quanto o permite seu conhecimento.
Diz-se que tanto a razão como a revelação afirmam que há graus de culpa; que alguns são mais culpados que outros; e que o mesmo indivíduo pode ser mais culpado num momento que em outro. O mesmo se diz da virtude. Uma pessoa pode ser mais virtuosa que outra, quando ambas são verdadeiramen­te virtuosas. E também a mesma pessoa pode ser mais virtuosa num momen­to que em outro, ainda que seja virtuosa em todos os momentos. Em outras palavras, afirma-se, tanto pela razão como pela revelação, que existe algo como crescimento, na virtude e também no vício.
É matéria de crença geral, também, que o mesmo indivíduo, com o mes­mo grau de luz ou conhecimento, é mais ou menos digno de louvor ou con­denação, conforme faça uma coisa ou outra; ou, em outras palavras, confor­me escolha um curso ou outro, para obter o fim que tem em vista; ou, em outras palavras, o mesmo indivíduo, com o mesmo conhecimento ou ilumi­nação, é mais ou menos virtuoso ou vicioso, de acordo com o curso de vida que escolha. Devo tentar mostrar que isso é preconceito humano e erro seriíssimo e injurioso.
Sustenta-se também em geral que dois ou mais indivíduos, tendo precisa­mente o mesmo grau de luz ou conhecimento, e sendo igualmente benevo­lentes ou egoístas, podem, apesar disso, diferir em seu grau de virtude ou vício, conforme busquem diferentes cursos de conduta externa. Isso também devo tentar demonstrar ser um erro fundamental.
Só podemos chegar à verdade a esse respeito quando compreendemos cla­ramente como medir a obrigação moral e, é óbvio, como certificar o grau de virtude e pecado. A quantidade ou grau de virtude ou vício, ou de mereci­mento de louvor ou condenação, é e deve ser decidido em referência ao grau de obrigação. E aqui devo lhes lembrar:
(1) Que a obrigação moral é baseada no valor intrínseco do máximo bem-estar de Deus e do universo, e:
(2) Que as condições da obrigação são a posse de poderes de agência mo­ral e da luz, ou conhecimento, do fim escolhido.
(3) Assim, segue-se que a obrigação deve ser medida pela compreensão ou julgamento mental honesto do valor intrínseco do fim a ser escolhido. Que isso, e nada mais, é a regra ou padrão pela qual a obrigação e, por conseguin­te, a culpa de violá-la devem ser medidas, ficará manifesto se considerarmos:
(1) Que a obrigação não pode ser medida pela infinitude de Deus, à parte do conhecimento do valor infinito de seus interesses. Ele é um ser infinito, e seu bem-estar deve ser de valor intrínseco e infinito. Mas, a menos que isso seja conhecido do agente moral, ele não pode estar sob a obrigação de desejá-lo como fim último. Se ele souber que tem algum valor, estará obrigado a escolhê-lo por esse motivo. Mas a medida de sua obrigação deve ser exata­mente igual à clareza de sua compreensão de seu valor intrínseco.
Além disso, se só a infinitude de Deus ou sem referência ao conhecimento do agente fosse a regra pela qual seria medida a obrigação moral, seguir-se-ia que a obrigação seria a mesma em todos os caos e, obviamente, que a culpa da desobediência seria também em todos os casos igual. Mas parece que a obri­gação moral e, é claro, a culpa, não pode ser medida pela infinitude de Deus, sem referência ao conhecimento do agente.
(2) Ela não pode ser medida pela infinitude de sua autoridade, sem refe­rência ao conhecimento do agente, pelos mesmos motivos acima.
(3) Ela não pode ser medida pela infinitude de sua excelência moral, sem referência, tanto ao valor infinito de seus interesses como ao conhecimento do agente; pois os interesses de Deus devem ser escolhidos como um fim, ou pelo próprio valor deles; e sem o conhecimento do valor deles, não pode ha­ver obrigação; e a obrigação também não pode exceder o conhecimento.
(4) Se, de novo, a excelência infinita de Deus fosse por si, ou sem referência ao conhecimento do agente, a regra pela qual a obrigação moral devesse ser medida, seguir-se-ia que a culpa em todos os casos de desobediência seria e deveria ser igual. Isso, conforme vimos, é impossível.
(5) Ela não pode ser medida pelo valor intrínseco do bem ou bem-estar de Deus e do universo, sem referência ao conhecimento do agente, pela mesma razão acima.
(6)  Ela não pode ser medida pelo curso de vida específico seguido pelo agente. Isso tornar-se-á manifesto se considerarmos que, diretamente, a obri­gação moral não tem relação alguma com a vida externa. Diretamente, ela só diz respeito à intenção última, e esta decide o curso da ação externa ou da vida. A culpa de qualquer ato externo não pode ser decidida com referência ao tipo de ação, sem considerar a intenção última; pois o caráter moral do ato deve ser encontrado na intenção, não no ato externo ou na vida. Isso me leva a observar que:
(7) O grau da obrigação moral e, é claro, o grau de culpa da desobediên­cia não pode ser propriamente estimado com referência à natureza da in­tenção, sem considerar o grau de conhecimento do agente. A intenção egoís­ta é, conforme vimos, uma unidade, sempre a mesma, e caso fosse esse o padrão pelo qual deve ser medido o grau de culpa, seguir-se-ia que seria sempre o mesmo.
(8) A obrigação e o grau de culpa também não podem ser medidos pela tendência do pecado. Todo pecado tende ao mal infinito, à ruína do pecador e, por sua natureza contagiosa, a disseminar-se, destruindo o universo. Ne­nhuma mente infinita pode conhecer quais podem ser os resultados últimos de qualquer pecado, caso isso fosse o critério pelo qual a culpa devesse ser estimada, todo pecado seria igualmente culpado, o que não é possível.
De novo: Que a culpa do pecado não pode ser medida pela tendência do pecado é manifesto pelo fato de que a obrigação moral não é fundamentada na tendência da ação ou intenção, mas no valor intrínseco do fim a ser inten­tado. Estimar a obrigação moral ou medir o pecado ou a santidade pela mera tendência das ações, faz parte da filosofia utilitária, que demonstramos' ser falsa. A obrigação moral diz respeito à escolha de um fim, não sendo tão con­dicionada pela tendência de a escolha última garantir seu fim. Assim, a ten­dência jamais pode ser a regra pela qual a obrigação possa ser medida, nem, é claro, a regra pela qual a culpa possa ser calculada.
(9) A obrigação moral também não pode ser estimada pelos resultados de uma ação moral ou curso de ação. A obrigação moral diz respeito à intenção e só diz respeito aos resultados naquilo que foram intentados. Muito bem pode resultar da morte de Cristo, por exemplo, sem nenhuma virtude em Judas, antes, com muita culpa. Assim, muito mal pode resultar da criação do mun­do, por exemplo, sem culpa para o Criador, antes, com grande virtude. Se a obrigação moral não é fundamentada nos resultados ou condicionada por eles, segue-se que a culpa não pode ser devidamente estimada pelos resulta­dos, sem referência ao conhecimento ou intenção.
(10) O que foi dito, creio, evidencia que a obrigação moral deve ser medi­da pela compreensão ou julgamento mental honesto do valor intrínseco do fim a ser escolhido, a saber, o máximo bem-estar de Deus e do universo.
Deve-se compreender de maneira nítida que o egoísmo implica a rejeição dos interesses de Deus e do universo, em favor dos próprios. Ele se recusa a desejar o bem, a menos que diga respeito a si mesmo. Ela desdenha os interes­ses de Deus e do universo, buscando só interesse próprio como um fim últi­mo. Deve-se seguir, portanto, que a culpa do homem egoísta é exatamente equivalente a seu conhecimento do valor intrínseco daqueles interesses que ele rejeita. Essa é a doutrina inegável da Bíblia.
Atos fornece um exemplo claro. O apóstolo Paulo alude aos períodos pas­sados em que as nações pagas não possuíam revelação divina escrita e obser­va que "não levou Deus em conta os tempos da ignorância" (At 17.30). Isso não significa que Deus não considerasse a conduta deles em grau algum, mas que considera seus pecados muito menos graves do que aqueles que os homens passam a cometer agora, caso dêem as costas quando Deus ordena que todos se arrependam. É verdade que o pecado jamais é uma coisa absoluta­mente leve; mas alguns pecados incorrem pequena culpa, quando compara­dos com a grande culpa de outros pecados. Isso é implicado no texto acima citado: "Aquele, pois, que sabe fazer o bem e o não faz comete pecado" (Tg 4.17). Isso implica nitidamente que o conhecimento é indispensável para a obrigação moral; e até mais que isso é implicado, a saber, que a culpa de qual­quer pecador é sempre equivalente ao seu nível de conhecimento sobre o as­sunto. Ela sempre corresponde à percepção mental do valor do fim que deve ser escolhido, mas é rejeitado. Se, em dada situação, um homem sabe o que deve fazer para o bem e, mesmo assim, não o faz, para ele isso é pecado — o pecado jaz claramente no fato de não fazer o bem, quando sabe que poderia fazê-lo, sendo medida a sua culpa pelo grau desse conhecimento.
"Disse-lhes Jesus: Se fósseis cegos, não teríeis pecado; mas como agora dizeis: Vemos, por isso, o vosso pecado permanece" (Jo 9.41). Aqui Cristo de­clara que os homens sem conhecimento estariam isentos de pecado; e que os homens que têm conhecimento e, assim mesmo, pecam, são considerados culpados. Isso afirma claramente que a presença da luz ou do conhecimento é requisito para a existência do pecado e, obviamente, implica que o nível de conhecimento possuído é a medida da culpa do pecado.
É notável que a Bíblia pressuponha verdades primeiras em toda parte. Ela não pára de prová-las ou mesmo de confirmá-las — mas parece pressupor que todos as conhecem ou as aceitarão. Recentemente, enquanto escrevo so­bre governo moral e estudo a Bíblia sobre seus ensinos acerca dessa classe de assunto, fico muitas vezes impressionado com esse fato notável.
"Aquele servo, porém, que conheceu a vontade de seu senhor e não se aprontou, nem fez segundo a sua vontade será punido com muitos açoites. Aquele, porém, que não soube a vontade do seu senhor e fez coisas dignas de reprovação levará poucos açoites. Mas àquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão" (Lc 12.47,48). Aqui temos a doutrina estabelecida e a verdade pressuposta: que os homens serão punidos de acordo com o conhecimento. Daquele a quem muita luz for dada, mais obediência será exigida. É precisamente esse o prin­cípio: que Deus exige dos homens de acordo com a luz que têm.
O egoísmo é a rejeição de toda obrigação. É a violação de toda obrigação. O pecado do egoísmo é, portanto, completo; ou seja, a culpa do egoísmo é do tamanho que pode ter com sua luz presente. O que a pode fazer maior com a luz presente? O curso que ela toma para obter seu fim pode mitigar sua cul­pa? Não; pois qualquer que seja o curso tomado, é por um motivo egoísta e, portanto, não pode, de modo algum, diminuir a culpa da intenção. O curso que toma para obter seu fim sem maior luz pode aumentar a culpa do peca­do? Não; pois o pecado jaz exclusivamente na intenção egoísta, e a culpa só pode ser medida pelo grau de iluminação ou conhecimento sob o qual a in­tenção é formada e mantida. A intenção necessita do uso dos meios, e quais­quer que sejam os meios usados pela pessoa egoísta, é por uma única razão: satisfazer a si mesmo. Como disse numa aula anterior, se o homem egoísta fosse pregar o Evangelho, seria apenas porque, no todo, isso seria mais agra­dável ou mais satisfatório para ele, e não, de modo algum, pelo bem do ser como um fim. Se viesse a ser pirata, seria exatamente pelo mesmo motivo, a saber, que esse curso seria, no todo, mais agradável e satisfatório para ele, e, de modo algum, pelo fato de esse curso ser mau em si. Qualquer que seja o curso por ele escolhido, ele o toma precisamente pela mesma razão última; e com o mesmo grau de luz, deve implicar o mesmo grau de culpa. Se a luz aumenta, sua culpa deve aumentar, mas não o contrário. A proporção é que todo ser egoísta é, a todo momento, condenável na medida de seu conheci­mento presente. Nenhum ser finito pode dizer qual desses cursos tende ao maior mal último, nem qual resultará no mal máximo. A culpa não deve ser medida por tendências ou resultados desconhecidos, mas de acordo com a intenção; e seu grau só deve ser medido pela compreensão que a mente pos­sui da razão da obrigação violada, a saber, o valor intrínseco do bem de Deus e do universo, que o egoísmo rejeita. Ora, deve-se lembrar que, seja qual for o curso que o pecador escolher para obter seu fim, é o fim que ele almeja. Ele intenta o fim. Se ele se tornar pregador do Evangelho por um motivo egoísta, ele não possui consideração correta pelo bem do ser. Se ele tem alguma consi­deração por isso, é apenas como um meio para o seu próprio bem. Assim, caso se torne pirata, não é pela maldade ou uma disposição de fazer o mal pelo mal, mas só para satisfazer-se. Se ele tiver alguma consideração pelo mal que possa fazer, a consideração é só para satisfazer-se. Portanto, quer pregue ou ore, quer roube ou pilhe em alto mar, ele só o faz para um fim, ou seja, pela mesmíssima razão última; e, é claro, sua culpa é completa, no sentido de que só varia de acordo com a variação da luz. Sei que isso difere da opinião co­mum, mas é a verdade e deve ser conhecido; e é da máxima importância que essas verdades fundamentais da moralidade e da imoralidade sejam mantidas na mente de todos.
Caso um pecador se abstenha de um curso vicioso por ser este ser perver­so, o motivo disso não pode ser sua benevolência, pois isso contradiria a su­posição de que ele é egoísta ou pecador. Se, em consideração ao fato de um ato ou curso ser perverso, o pecador se abstém dele, isso deve ser por um motivo egoísta. Pode ser em obediência à consciência frenológica, ou pode ser por medo do Inferno, ou da desgraça, ou por remorso; em todos os casos, só pode ser por um motivo egoísta.
A depravação total é um atributo do egoísmo, no sentido de que toda pessoa egoísta é o tempo todo tão perverso e culpável quanto sua luz atual permite



wagner escatamburgo

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